sexta-feira, agosto 17, 2007

Estou distraída. o painel luminoso indica o meu número. Levanto-me da cadeira e, por momentos, apetece-me fugir porta fora. Dirijo-me à funcionária que pega na minha credencial. Hum! Pega num comprimido cor de rosa e entrega-me. Tem ali água, tome-o por favor.
Subo o rio, vejo as pontes e desço lentamente numa língua de areia onde encontro uma espécie de cabana. Por baixo dum alpendre vários homens conversam enquanto saboreiam o peixe acabado de assar. Falam de futebol, de que outra coisa haveriam de falar? Na mão o copo de vinho e no ar aquele cheiro a rio. Ignoram-me.
Tento explicar que já tomei dois comprimidos, pequeninos. É para acalmar. Vai ser bonito, vou acabar por adormecer na cadeira. Obedeço. Volto a sentar-me com ar aparvalhado.
Tenho sede. Tento pegar num copo e não consigo. Agora a conversa está mais azeda, os técnicos da bola não se entendem. resolvo partir. Ao longe a lezíria a perder de vista e é para lá que me dirijo.
Dona ... Estremeço. Reconheço o nome e como um autómato encaminho-me para a voz que não conheço. Passo a porta e tenho consciência que , desta vez, vou fazer o exame. Boa tarde. Boa tarde??? Deve estar a gozar comigo.
O sol já vai alto. Entregue ao meu desvario não dei pelo tempo passar. perco-me no verde salpicado de malmequeres. O céu já não tem nuvens e de tão azul, fere-me a vista.
Dispa-se, por favor. Como? Não me apetece tirar a roupa, vou-me sentir vulnerável. É preciso. Deito-me na marquesa e o médico vai falando. Tantas palavras que não quero entender. Como se sente? Mal, sinto-me mal. Acende-se uma luz forte e fecho os olhos.
Preciso de descansar. Deito-me no meio do campo e fecho os olhos. Recordo a viagem, recobro a energia.
Vai sentir uma picada ligeira, a anestesia. mordo o lábio e procuro na mente o significado de ligeira - rápida, indolor,... Durou uma eternidade e a dor foi grande. Transpiro. Espero que essa anestesia ligeira faça efeito.
Tenho sono, um sono imenso mas não devo dormir. Ao longe um melro canta e sinto na pele nua a aragem.
Agora vai ficar muito quieta. Vai sentir uma impressão e já está. Fecho os olhos, não quero ver. Solto um grito e tento juntar-me aquela que repousa no campo. Ao longe a voz que já conheço. Não vai desmaiar agora?! Está quase.
Corro, voo. Num desespero irrompo pela sala do exame. Agarro a mão viscosa de suor e sussurro-lhe palavras ao ouvido. Vejo o arpão com que lhe trespassam o peito e as lágrimas correndo-lhe na face. Vai passar, vai passar num instante porque estou aqui, é isso que lhe digo.
A dor torna-se insuportável, quero morrer, acabar com aquele momento, o ferro em brasa com que me penetram. Depois o vazio, o não ser e aquela voz que me diz: vai passar, vai passar num instante porque estou aqui.

11 comentários:

Anónimo disse...

Sou sempre uma leitora silenciosa e, confesso, não muito atenta. Mas desta vez começo a ficar "preocupada".

Você parece um carrocel: "(...) e alegre se fez triste (...)".

Que se passa?

Anónimo disse...

"carrossel"... Obviamente!

butterfly disse...

Obrigada pela atenção. Uma pequena história de alguém que passou a vida inteira a contar só com ela, nos momentos dificeis. Uma opção minha. Um orgulho estúpido e a mania de que não devo preocupar ninguém.
Um abraço

Anónimo disse...

por muito que queiramos apenas ouvimos o que nos é permitido ouvir e não o que gostavamos de ter ouvido!

cara amiga as guerreiras não existem por acaso!
Beijo

tb ouço os melros ao fim do dia a minha alma que o diga.

como sei q não vai apagar esta eu diria mais...cestas voadoras pela força do hábito!

abraço

ps: também estou preocupada e muito, que danado de exame é esse afinal? ou vai ser como nos filmes nunca se chega a saber porque o artista morre no fim? :)))

Anónimo disse...

eu não disse?

beijinho

sou mesmo néscia :)))

Anónimo disse...

"(...)a mania de que não devo preocupar ninguém." ou o receio de que ninguém se preocupe?

Vá lá, esta vida não é sempre má. Anime-se!

A mesma "anónimo".

butterfly disse...

:) Não quero deixar transparecer um dramatismo que não tenho.
Exame - biopsia a um nódulo.
Nada de mais, espero eu.

Continuo a ouvir os melros, as cotovias e a voar ao sabor dos afectos-
beijo

rach. disse...

Continuas a mesma lutadora de sempre :)
E, desculpa que te diga, isso de travar batalhas e orgulho leva ao caos e à derrota. A história comprova-o
Beijos, linda

butterfly disse...

olá Rach:)
Beijo

butterfly disse...

"Medo de que ninguém se preocupe?"
Felizmente isso não é verdade.
Tenho uma mão cheia de amigos e uma família. assim eu posso escolher: preocupar ou não.

Anónimo disse...

Pensamentos que tiram a vertigem momentânea do nada poder fazer.
Pensamentos que confortam e nos transportam.
Bons pensamentos e lembranças pra gente sempre, não é mesmo?
Simone